ENSAIO DE CRÍTICA CINEMATOGRÁFICA



OS SELVAGENS DA MOTOCICLETA

O Ser Humano e Suas Circunstâncias




Quem se lembra do filme O Selvagem (The Wild One, EE.UU., 1953), do húngaro Laszlo Benedek (1907-1992), O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish, EE.UU., 1983), realizado exatamente trinta anos depois por Francis Ford Coppola (1939-), poderá levar a pensar numa refilmagem do anterior, não obstante extemporânea e anacrônica. Tanto pela repetição do adjetivo selvagem quanto pela utilização da motocicleta. Ainda mais por haver, em ambos, similitudes de posicionamentos dos respectivos protagonistas, interpretados, respectivamente, por Marlon Brando e Mickey Rourke.

Contudo, as possíveis semelhanças param por aí. No mais, prevalecem as diferenças. Inúmeras, a começar pelos distintos períodos sociais, históricos e econômicos vividos pelos Estados Unidos e pelo mundo.

No primeiro, ainda sob a euforia do desenvolvimento econômico desencadeado com o término da Segunda Guerra Mundial, propiciando a construção de grandes auto-estradas ou mesmo estradas secundárias, porém, asfaltadas, e a substituição das fábricas de artefatos bélicos por carros e motos, permitindo a despreocupação, o descompromisso e o desengajamento da juventude.

Assim, sem ideal ou necessidade pelos quais lutar, desocupada e desorientada, a juventude lança-se à busca de novidades e emoções, reunindo-se em bandos de motociclistas e lançando-se pelas estradas sem rumo, propósito ou destino.

Nesse vai e vem ocorrem inevitavelmente choques culturais, concretos e frontais, com as populações conservadoras e rotineiras dos pequenos núcleos populacionais espalhados pela imenso interior do país. Esses, os selvagens da década de 1950 e de Benedek. Não, porém, os da década de 1980 e de Coppola.

Não que as abissais dessemelhanças de situação do Estados Unidos e do mundo dessas épocas tenham responsabilidade no desnível substancial e qualitativo desses filmes.

É bem verdade, que não há termo de comparação entre os ambientes, os ânimos, os ideais e os anseios desses períodos.

Mas, não são essas diferenças, conquanto profundas, que determinam a natureza e o disparidade conceptiva e de realização dos filmes em questão.

Se a conjuntura econômica, social, política, humana e comportamental é outra, o que os distingue, basicamente, é a diversa perspectiva existencial assumida pelos cineastas.

O selvagem de Benedek é enigmático, sorumbático e calado. O de Coppola, de tão econômico de palavras e de tão despido de variação expressional, é mais enigmático que o primeiro. Mas, só a princípio, porque no desenrolar da ação sua postura esfíngica vai sendo decifrada, tanto pela revelação do pai no expressivo e significativo diálogo que em sua presença mantém no bar com o filho caçula (Matt Dillon) quanto, ainda, por sua conduta ao final do filme, confirmativa da análise e julgamento do pai.

Se o protagonista de Benedek inicialmente se interessa (a única coisa que em lampejo atrai sua atenção) pela garota do bar mas, não dá seguimento a essa atração, mesmo que mútua, também não é cativado por nenhuma outra pretensão, a exemplo da garota que o procura e por ele se sente atraída e com ele já se relacionara, ainda que brevemente, sendo frontalmente desprezada.

Se ambos os selvagens lideram grupos de desocupados, não é também essa circunstância que poderá aproximar os filmes.

A distinção básica, calcada e cimentada nos fundamentos estruturais de cada um dos períodos da história do país, é, pois, como referido, de perspectiva.

Em Benedek, a irresponsabilidade e o desfrute da vida pelos motoqueiros e seu confronto com a sociedade estabelecida. Em Coppola, a desorientação e a angústia dos protagonistas a partir da completa desestruturação do lar em decorrência de seu abandono pela mãe, desencaminhando o pai, tornado alcoólatra consciente e inveterado.

Não apenas esses diversos enfoques os destinguem. A diferença maior - e essencial é - de tratamento temático.

Se Benedek situa muito bem suas personagens citadinas no meio social em que vivem, conformando sua conduta a seus biótipos, mas, o efetivando mimeticamente, por meio da exteriorização de atos e atitudes, sem descerrar-lhes a estrutura mental, Coppola, restringindo a construção tipológica praticamente às figuras do selvagem, do irmão e do pai, revela-lhes as condicionantes comportamentais e suas conseqüências a partir de seu situacionamento. E o faz mediante minuciosa constituição de personagens moldadas pela tragédia deflagradora acrescida de generalizada inaptidão ou desinteresse pelo mundo, do qual se encontram desconectados.

O selvagem de Coppola, líder inconteste de gangue, atira-se às estradas da Califórnia - fato só referenciado - mais à procura da mãe do que outra coisa. Seu irmão mais novo padece de isolamento e, à semelhança de pai, vai sendo levado pela vida.

Ao contrário do filme naturalista e, portanto, superficial de Benedek, o de Coppola é substancial ao expor as personagens vivendo exteriormente seu drama interior e por ele talhadas e impulsionadas.

No encontro casual dos irmãos com o pai no bar ocorrem não só o principal diálogo entre este e o caçula, já que o selvagem limita-se a olhar e observar, mas, também a decifração do modo de ser do selvagem:

“Ele [o selvagem] é capaz de fazer tudo o que quiser... mas não encontra nada que queira fazer”, afirma o pai.

Ao responder à indagação do mais novo se sua mãe era louca porque abandonara o lar, responde o pai:

“De vez em quando, aparecem pessoas que têm uma visão diferente do mundo, mas são normais. Não significa que são loucas.”

Se o filho primogênito, o selvagem, e sua mãe estão sinteticamente analisados, julgados e explicados, pelo pai e marido, a situação intelectual e comportamental do mais novo é decifrada e exposta por ele mesmo:

- “Sinto desperdiçar a vida, esperando por algo.

- Esperando o quê?, indaga-se-lhe.

- Queria ter uma razão para viver.”

Seu vazio existencial, que é o de milhões de jovens, decorre quase sempre – para não dizer sempre – do sem sentido da existência que as grandes corporações industriais e comerciais – que dominam e diretamente impõem sua orientação à mídia e, por tabela, a quase todas as pessoas – impingem no consciente e imprimem no inconsciente da população ao restringir o sentido da vida ao consumo, formando, como já foi dito por alguém, não cidadãos, mas, consumidores automatizados e destituídos de quaisquer valores consistentes.O que faz da obra de Coppola um dos principais filmes de seu país é um conjunto de atributos consistente em substância humana, consciência elaborativa, autenticidade relacional das personagens e o correto e adequado espelhamento nos protagonistas da influência e moldagem – em subtexto – das circunstâncias econômico-sociais gerais e das especificidades familiares e pessoais de cada um deles.

(Guido Bilharinho, do Livro O Drama no Cinema dos Estados Unidos)


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